“Visto
que nos encontramos neste estado degradado de imperfeição moral, será melhor
sermos práticos, harmonizarmos nossa música e, pelo mesmo processo, começarmos
a compor uma nova e melhor forma de arte. Uma arte de acentuada sublimidade
poderá, por si só, levar-nos de volta aos céus.”
— Bach —
“Sinto-me
obrigado a deixar transbordar de todos os lados as ondas de harmonia
provenientes do foco da inspiração. Procuro acompanhá-las e delas me apodero
apaixonadamente; de novo me escapam e desaparecem entre a multidão de
distrações que me cercam. Daí a pouco, torno a apreender com ardor a
inspiração; arrebatado, vou multiplicando todas as modulações, e venho por fim
a me apropriar do primeiro pensamento musical. Tenho necessidade de viver só
comigo mesmo. Sinto que Deus e os anjos estão mais próximos de mim, na minha
arte, do que os outros. Entro em comunhão com eles, e sem temor. A música é o
único acesso espiritual nas esferas superiores da inteligência.”
—
Beethoven —
O presente estudo pretende refletir sobre a
influência que a música, assim como as artes em geral, exerce sobre o
comportamento espiritual do ser humano.
A Música e sua Origem Divina
De acordo com escrituras e mitologias de todos os
povos a música, assim como as demais expressões da arte, foram trazidas aos
homens pelos deuses. Na remota antiguidade, a música era empregada com a
sagrada finalidade de reverenciar o Ser Supremo. Sua finalidade era a de
expressar as cosmogonias, elevar a alma humana às alturas das esferas
espirituais. Todas as expressões artísticas desenvolveram-se á luz dos ritos
iniciáticos, com a finalidade de expandir a consciência dos inciados durante as
cerimônias sagradas, abrindo-lhes a captação psíquica para experiências
transcendentes.
Com o tempo a arte saiu do âmbito dos templos e do
sagrado, vulgarizou-se, caiu na banalização das massas, passando a refletir
seus instintos inferiorizados, anseios embrutecidos e a desmesurada ambição
pelo lucro e a fama.
O Poder Oculto da Música
Atualmente a ciência, sobretudo no campo da
medicina e da psicologia, vêm redescobrindo verdades e conhecimentos que os
antigos sábios detinham sobre o poder oculto da música.
Hoje sabemos que basta estarmos no campo audível da música para que sua
influência atue constantemente sobre nós, acelerando ou retardando, regulando
ou desregulando as batidas do coração; relaxando ou irritando os nervos;
influindo na pressão sanguínea, na digestão e no ritmo da respiração, exercendo
alterações sobre os processos puramente intelectuais e mentais.
Modernos pesquisadores estão começando a descobrir
que a música influi no caráter do indivíduo e, ao influir em seu caráter,
significa alterar o átomo ou unidade básica — a pessoa — com a qual se constrói
toda a sociedade.
Os grandes sábios da China antiga até o Egito,
desde a Índia até a idade áurea da Grécia acreditavam que há algo imensamente
fundamental na música que lhe dá o poder de fazer evoluir ou degradar
completamente a alma do indivíduo e, desse modo, fazer ou desfazer civilizações
inteiras.
Assim, “uma inovação no estilo musical tem sido
invariavelmente seguida de uma inovação na política e na moral”, conclui um
estudioso moderno.
O Messias de Handel
A influência da música sobre o nosso comportamento
é algo que desperta cada vez mais o interesse dos estudiosos. Ela pode
influenciar no comportamento de toda uma nação, como por exemplo ocorreu com o
rei George III, na Abadia de Westminster, durante uma apresentação de Handel. A
certa altura da apresentação da obra o Messias (o coro da Aleluia) (clique e
ouça) o rei se pôs em pé, sinal para que todo o público se levantasse. Ele
estava chorando. Nada jamais o comovera tão vigorosamente. Dir-se-ia um grande
ato de assentimento nacional às verdades fundamentais da religião.
Os diferentes tipos de música levam-nos a
manifestar comportamento mentais-emocionais específicos. Em certas
circunstâncias, somos induzidos a alterar procedimentos em função dos
diferentes estados de consciências que a música, involuntariamente, pode nos
levar a alcançar. Assim, sob sua influência, podemos tomar a decisão impulsiva
e decisiva para iniciar ou terminar um determinado relacionamento amoroso, ou
ainda, quem sabe, aumentar ou diminuir a velocidade de nosso carro num lugar
inapropriado.
Rossini fala a Kardec sobre a Música Espírita
Em contatos com Allan Kardec, nas reuniões da Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, o espírito do músico e compositor clássico
Gioachino Rossini, por solicitação do codificador, falou sobre alguns aspectos
espirituais da música e sua influência no comportamento espiritual do homem.
Rossini fora um músico extremamente bem sucedido,
tendo recebido do rei de França os cargos de Primeiro Compositor do Rei e
Inspetor Geral de Canto, recebendo um salário invejável. Esbanjou talento — foi
contratado exclusivo do Teatro de Milão durante vinte anos, autor de 30 óperas,
reconhecido como a “personalidade mais brilhante que jamais dourou as páginas
do livro musical do mundo contemporâneo”.
Mas, no além, diante da solicitação de Allan
Kardec, ele se julga incapacitado para discorrer a respeito da finalidade
transcendente da música, prometendo estudar o assunto, lá, nos domínios
espirituais para, numa outra oportunidade, voltar a falar aos membros da
Sociedade.
Lembra Rossini ao codificador do espiritismo que a
embriaguez do êxito, a complacência dos amigos e as lisonjas dos cortejadores
muitas vezes lhe tiraram o meio de reconhecer suas fraquezas morais,
turvando-lhe o discernimento sobre a sublime finalidade da arte musical.
Numa posterior comunicação ele volta para expor
suas novas idéias. Começa redefinindo o conceito de harmonia, comparando-a com
a luz. Assim ele se expressa: “Fora do mundo material, isto é, fora das causas
tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina. A posse de uma e outra
está na razão dos esforços empregados para adquiri-las, elas que são duas
sublimes alegrias da alma, filhas de Deus e, portanto, irmãs”, querendo dizer
com isso que um refinado executante ou ouvinte de música, do ponto de vista
espiritual, é alguém que conquistou algo de luz e harmonia em si mesmo.
A Harmonia é um Sentido Íntimo da Alma
O espírito de Rossini inicia sua mensagem propondo
um novo conceito sobre a expressão HARMONIA, comparando-a com a luz. Para ele,
ambas são uma espécie de sentidos íntimos da alma, estados transcendentes do
ser. Explica que a alma é apta a perceber a harmonia, mesmo sem o auxílio de
qualquer instrumentação, como é apta a perceber a luz sem o concurso das
combinações materiais.
“Quanto mais desenvolvidos são esses sentidos
íntimos da alma, tanto melhor percebe ela a luz e a própria harmonia”, ensina.
As Diferentes Harmonias do Espaço
O espírito do grande maestro se diz espantado ao
contemplar as diferentes harmonias do espaço. Diz serem constituídas por
inúmeros e diferentes graus, conhecidos e desconhecidos, dispersos e ocultos no
éter infinito. Essas diferentes harmonias, percebidas separadamente, constituem
a harmonia particular de cada grau.
A boa música transporta a alma às elevadas esferas
do mundo moral
Explica que nos graus inferiores, essas harmonias
são elementares e grosseiras. Nos graus superiores, levam ao êxtase. Revela que
“quando é dado ao espírito inferior deleitar-se com os encantos das harmonias
superiores, o êxtase o arrebata e a prece lhe penetra o íntimo”. Informa que a
música é um tipo de “encantamento que o transporta às elevadas esferas do mundo
moral”. Imerso nas vibrações de uma música superior, o espírito então “entra a
viver uma vida superior à sua e assim deseja continuar a viver para sempre”.
Contudo, cessada a harmonia que o penetra, “ele desperta para a realidade da
sua situação e, dos lamentos que lhe escapam por haver descido, nasce-lhe o
desejo de adquirir forças para de novo elevar-se — e aí tem ele um grande
motivo de emulação”.
Concluímos, portanto, que a música superior
contribui para a elevação espiritual do ouvinte — ou do executante — quando
dela sabe-se tirar bom proveito.
O espírito do músico atua sobre o fluido universal
(ou energia cósmica) através de seu sentimento
O maestro Rossini ressalta que o espírito produz
os sons que é capaz de saber e não consegue querer o que não sabe. “Assim,
aquele que compreende muito, que tem em si a harmonia, que se acha dela
saturado, que goza do seu sentido íntimo, desse nada impalpável, dessa
abstração que é a concepção da harmonia, atua quando quer sobre o fluido
universal que, instrumento fiel, reproduz o que ele concebe e deseja. O éter
vibra sob a ação da vontade do espírito. A harmonia que o espírito traz em si
concretiza-se, por assim dizer, evola-se, doce e suave, como o perfume da
violeta, ou ruge como a tempestade, ou estala como o raio, ou solta queixumes
como a brisa. É rápida como o relâmpago, ou lenta como a neblina; tem os
despedaçamentos de um soluço, ou é contínua como a relva; é precipitada qual
catarata, ou calma como um lago; murmura como um regato, ou ronca como uma
torrente. Ora apresenta a rudeza agreste das montanhas, ora a frescura de um
oásis; é alternativamente triste e melancólica como a noite, leda e jovial como
o dia; caprichosa como a criança, consoladora como uma paixão, límpida como o
amor e grandiosa como a Natureza. Quando chega a este último terreno,
confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao arroubamento aquele mesmo
que a produz, ou a concebe”, esclarece poeticamente o maestro.
Pela música, o espírito faz ressoar no éter a
harmonia que traz em si.
Rossini explica que o sentimento da harmonia é
como o espírito que tem a riqueza intelectual: um e outro possuem
constantemente da propriedade inalienável que conquistaram pelo esforço.
“Pela música, o espírito faz ressoar no éter a
harmonia que traz em si”, define o maestro.
Assim como o espírito inteligente, que ensina a
sua ciência aos que ignoram, experimenta a ventura de ensinar, porque sabe que
torna felizes aqueles a quem instrui, também o espírito que faz ressoar no éter
os acordes da harmonia que traz em si experimenta a felicidade de ver
satisfeitos os que o escutam.
Para ele, “a harmonia, a ciência e a virtude são
as três grande concepções do espírito: a primeira o arrebata, a segunda o
esclarece, a terceira o eleva. Possuídas em toda a plenitude, elas se confundem
e constituem a pureza”.
A Música é o Médium da Harmonia
Explica o maestro que “o compositor que concebe a
harmonia a traduz na grosseira linguagem chamada música, concretiza a sua idéia
e a escreve e, embora desvirtuada pelos agentes da instrumentação e da
percepção, a música sempre causa impressões nos que a ouvem traduzida. Essas
sensações são a harmonia. A música as produz. As sensações são efeito da
música. Esta é posta a serviço do sentimento para ocasionar a sensação. O
sentimento, na composição, é a harmonia; a sensação. No ouvinte, é também a
harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A
música é o médium da harmonia. Ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium
da luz, como tu és o médium dos espíritos. É concebida pela alma e transmitida
à alma”.
A música espiritualizada é essencialmente moralizadora
Extraordinária diferença há na concepção e
apreciação da música entre homens e espíritos: enquanto na terra tudo é
grosseiro, os espíritos, contudo, possuem a percepção direta.
“É possível expor os fatos que os sentimentos íntimos provocam, defini-los,
descrevê-los, mas, os sentimentos, esses se conservam inexplicados. A música
pode provocar sentimentos diferentes em cada pessoa porque as mesmas causas
geram efeitos contrários. Em física isto não existe, mas em metafísica existe.
Existe, porque o sentimento é propriedade da alma e as almas diferem de
sensibilidade entre si, de impressionabilidade, de liberdade. A música, que é a
causa segunda da harmonia percebida, penetra e transporta a um, deixando frio e
indiferente a outro. É que o primeiro se acha em estado de receber a impressão
que a harmonia produz, ao passo que o segundo se acha em estado oposto: ele
ouve o ar que vibra, mas não compreende a idéia que lhe traz. Este chega a
entediar-se e a adormecer, enquanto que aquele outro se entusiasma e chora.
Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é muito mais elevado,
mais depurado, do que aquele em quem ela não logra penetrar. Sua alma, mais
apta a sentir, desprende-se mais facilmente e a harmonia lhe auxilia o
desprendimento, transporta-a e lhe permite ver melhor o mundo moral. Deve-se
concluir daí que a música é essencialmente moralizadora, uma vez que traz a
harmonia às almas e que a harmonia as eleva e engrandece”.
A Música exerce influência sobre a Alma e seu
Progresso
O grande músico traz a Allan Kardec um
interessante conceito sobre o poder espiritualizador da música: “A harmonia
(expressa pela música) coloca a alma sob o poder de um sentimento que a
desmaterializa”. Isto significa que a harmonia, expressa pela boa música,
acelera nossas vibrações, permitindo-nos sentimentos de acesso espiritual a
dimensões que não conseguimos alcançar comumente.
“Este sentimento existe em certo grau, mas
desenvolve-se sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que
esteja desprovido de tal sentimento é conduzido gradativamente a adquiri-lo,
acaba deixando-se penetrar por ele e arrastar ao mundo ideal, onde esquece, por
instantes, os prazeres inferiores que prefere à divina harmonia”.
Podemos refletir aqui o poder e a responsabilidade
que possui um artista espiritualizado e consciente, pois que lhe é dado
arrebatar, pela emoção superior, as almas dos homens às alturas das esferas
transcendentes, assim como ele próprio pela mesma música é arrebatado.
A Música Reflete a Alma do Compositor
Rossini lembra que se considerarmos que a harmonia
sai do concerto do espírito, podemos deduzir que a música exerce salutar
influência sobre a alma (que é, em verdade, o espírito encarnado) e a alma que
a concebe também exerce influência sobre a música. Há uma simbiose entre o
artista e sua obra, uma vez que eles se confundem no resultado final. “A alma
virtuosa, que nutre a paixão do bem, do belo, do grandioso e que adquiriu
harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as mais endurecidas almas
e de comovê-las. Se o compositor é terra-a-terra, como poderá exprimir a
virtude de que desdenha, o belo que ignora e o grandioso que não compreende?
Suas composições refletirão seus gostos sensuais, sua leviandade, sua
negligência. Serão, ora licenciosas, ora obscenas, ora cômicas, ora burlescas,
comunicando aos ouvintes os sentimentos que exprimem e os perverterão, em vez
de melhorá-los”.
Essa dissertação nos faz meditar que é melhor
termos mais cuidado com o nosso cardápio musical, muitas vezes digerido,
involuntariamente, por coação dos meios de comunicação alienadores. É bom
perguntar: em que tipo de música andamos refletindo os nossos gostos íntimos?
A educação espiritual aprimorará o gosto das
pessoas pela música
Rossini esclarece que o Espiritismo, ao moralizar
os homens, exercerá uma grande influência sobre a música. Produzirá mais
compositores virtuosos, que transfundirão suas virtudes ao fazerem ouvidas suas
composições. “Rir-se-á menos; chorar-se-á mais; a hilaridade cederá lugar à
emoção, a fealdade à beleza e o cômico à grandiosidade”.
Por outro lado, “os ouvintes que o espiritismo
dispuser a receber facilmente a harmonia se elvarão, ouvindo a música séria, de
verdadeiro encanto; desprezarão a música frívola e licenciosa, que seduz as
massas”.
Sobre a sublimação da arte musical, o autor ainda revela a Allan Kardec:
“Quando o grotesco e o obsceno forem varridos pelo belo e pelo bem,
desaparecerão os compositores daquela ordem, porquanto, sem ouvintes, nada
ganharão, e é para ganhar que eles se emporcalham”.
O Espiritismo exercerá influência sobre as Artes
O espiritismo terá influência sobre a música,
prossegue. “Seu advento transformará a arte, depurando-a. Sua origem é divina,
sua força o levará a toda parte onde haja homens para amar, para elevar-se e
para compreender. Ele se tornará o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores,
escultores, compositores, poetas irão buscar nele suas inspirações e ele lhas
fornecerá, porque é rico, é inesgotável”.
E sobre si mesmo, faz uma interessante revelação:
“O espírito do maestro Rossini voltará, numa nova existência, a continuar a
arte que ele considera a primeira de todas. O espiritismo será seu símbolo e o
inspirador de suas composições”.
FONTE: Estudo elaborado sobre comunicações do
espírito do maestro e compositor Gioachino Rossini, ocorridas na Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, cujo tema é “Música Espírita”, contido no
livro Obras Póstumas, de Allan Kardec.
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